quinta-feira, 27 de abril de 2017

Esclarecendo algumas polêmicas sobre o gás natural e o biogás/biometano

Já não é de hoje que o gás natural divide opiniões, por motivos que vão desde limitações práticas que o sistema de combustível alternativo impõe a um veículo adaptado até rumores quanto a eventuais danos que poderia causar aos motores. Regulamentado para uso em táxis e frotas de serviço a partir de '91, sendo liberado para veículos particulares em '96 com uma disponibilidade ainda restrita às regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, de São Paulo e da Baixada Santista, consolidou-se como alternativa à gasolina em uma área mais abrangente a partir de 2001 com a conclusão e entrada em plena operação do gasoduto Bolívia-Brasil e de certa forma cresceu no vácuo do etanol deixado pela decadência do ProÁlcool. Apesar do sucesso comercial, é impossível ignorar os temores quanto às políticas energéticas da Bolívia e um eventual impacto no fornecimento do combustível para o Brasil, além de instalações precárias dos kits de conversão para gás natural veicular prejudicarem não apenas a durabilidade mas também a segurança.

Muito se comenta sobre uma redução nas emissões ao utilizar o gás natural tomando por base não apenas os parâmetros originais do motor a gasolina, etanol ou "flex" convertido quanto um Diesel de desempenho semelhante, principalmente no caso do dióxido de carbono (CO² - gás carbônico) e dos óxidos de nitrogênio (NOx), mas cabem algumas ressalvas. Dotado de uma maior resistência à pré-ignição (a popular "batida de pino"), superior até mesmo à do etanol, não é incomum que os veículos convertidos sejam ajustados para usar uma mistura ar/combustível muito pobre ao operar com o gás, afetando não apenas as emissões mas também o desempenho e a durabilidade de alguns componentes do motor. Ainda que favoreça a redução nas emissões de CO², uma proporção menor de combustível absorve menos calor latente no fluxo de ar da admissão, resultando numa operação a temperatura mais elevada que, além de induzir uma geração mais intensa dos NOx, pode levar a um maior risco de trincas no cabeçote e desgaste acentuado das sedes de válvula. É comum o mito de que o gás natural, por ser mais "seco", proporciona uma lubrificação menos eficiente das sedes de válvula, que num motor do ciclo Otto equipado com carburador ou injeção eletrônica (exceto injeção direta) dependem do combustível para a refrigeração das válvulas de admissão enquanto as de escape podem recorrer tanto ao uso de ligas mais resistentes a altas temperaturas quanto outros métodos mais sofisticados como o preenchimento das hastes com sódio para obter uma rejeição de calor mais eficaz. Alguns motores mais antigos que não contam com esguichos de óleo por baixo dos pistões também dependem da mistura mais rica para refrigerá-los, às custas de uma alta emissão de hidrocarbonetos crus.

Considerando que nos veículos leves tanto uma presença quase nula do Diesel quanto um perfil de operação predominantemente regional de curtas e médias distâncias possam ser creditadas como pretextos para uma adesão relativamente ampla ao gás natural em áreas com uma infraestrutura já consolidada para garantir o fornecimento do combustível alternativo, a situação muda de figura quando se trata de algumas aplicações para utilitários pesados em longas distâncias com uma menor disponibilidade de pontos para reabastecimento do gás ao longo dos itinerários. O peso e volume do sistema de combustível, crítico devido à redução na capacidade de carga paga e eventuais interferências na concentração de peso entre os eixos, também acaba por limitar a aplicabilidade do gás a algumas operações muito específicas de curta a média distância no transporte urbano e metropolitano de passageiros ou cargas de baixa densidade, estando portanto longe de ser uma solução "milagrosa" para um país de dimensões continentais e ainda muito dependente do modal rodoviário como o Brasil. Também não se deve desconsiderar uma maior depreciação de caminhões e ônibus preparados para uso exclusivo de combustíveis alternativos voláteis, o que abrange não apenas o gás natural e inclui até mesmo o etanol, tendo em vista que nem sempre o veículo vá permanecer operando em regiões com fácil disponibilidade do combustível original após ser revendido como usado, e assim se faz necessário amortizar o custo da conversão para Diesel.

Se ao menos num primeiro momento o gás natural se revela pouco promissor como um eventual substitutivo para o óleo diesel convencional, por outro é conveniente debater a possibilidade de uma integração entre ambos os combustíveis. Empresas como a Convergas Fuel Systems, de Vinhedo-SP, e a multinacional de origem italiana LandiRenzo, já oferecem no mercado nacional sistemas dual-fuel para uso combinado do óleo diesel com o gás natural. De certa forma, apesar de não promover uma substituição completa do combustível original em função da alta compressibilidade e resistência à auto-ignição inerentes ao gás natural, dependendo ainda de uma injeção-piloto de óleo diesel convencional em proporções variáveis para promover a ignição, o funcionamento chega a lembrar o de um sistema de 5ª geração para veículos com motor de ignição por faísca. Paradoxalmente, a expansão do gás ao se misturar com o fluxo de ar na admissão tem um efeito comparável tanto ao da recirculação de gases de escape (EGR - Exhaust Gas Recirculation) no tocante a uma diminuição na concentração de oxigênio nas câmaras de combustão quanto à injeção suplementar de água frequentemente usada em aplicações de alto desempenho para resfriar a massa de ar de admissão, tornando as condições do processo de combustão menos propícias à formação dos NOx.

Cabe observar alguns efeitos que a injeção suplementar de gás natural proporciona na preservação de um bom funcionamento dos dispositivos de controle de emissões que se fazem presentes nos motores turbodiesel mais modernos para assegurar o enquadramento a normas ambientais cada vez mais rígidas e também controversas. No caso do EGR, como os gases inertes pós-combustão readmitidos conservam material particulado em suspensão e uma temperatura elevada mesmo passando por um resfriador, a presença do gás natural no fluxo de admissão promove uma refrigeração mais intensa da carga de gases de escape recirculados por meio da absorção de calor latente de vaporização, além de permitir uma menor demanda do EGR sem prejuízos ao controle das emissões de NOx. Em veículos equipados com SCR, que faz a redução catalítica seletiva dos NOx mediante de um fluido aquoso à base de uréia a 32,5%, conhecido em mercados internacionais como AdBlue, DEF ou ARNOx-32 e denominado oficialmente ARLA-32 no Brasil, o uso combinado de óleo diesel e gás natural também pode proporcionar uma redução no consumo do reagente químico. Também é conveniente recordar que, em função de uma propagação de frente de chama mais intensa associada à substituição parcial do óleo diesel pelo gás, ocorre uma combustão mais completa, beneficiando o filtro de material particulado (DPF) que passa a sofrer uma saturação menos intensa e prolonga os intervalos entre os ciclos de autolimpeza forçada (ou "regeneração").

Diante de eventuais vantagens compatíveis com algumas condições operacionais, em que pesem tanto um temor de parte do público com relação à segurança dos sistemas de gás natural veicular quanto a preferência de muitos operadores pelo manejo de combustíveis líquidos aos quais já estão habituados, seria de se esperar que o gás despertasse um interesse maior também em regiões onde ainda não é encontrado com tanta facilidade. Seria justamente nesse contexto que o biogás bruto e o biometano já purificado podem se revelar úteis, não apenas como uma alternativa para atender à demanda local mas também em uma eventual integração ao suprimento regular em substituição ao gás natural de origem fóssil. Além do biometano puro servir adequadamente ao uso como combustível veicular, o biogás bruto tem potencial para substituir o gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha") em aplicações estacionárias, reduzindo o impacto ambiental e os custos associados à logística de distribuição em locais mais ermos. O aproveitamento de matérias-primas mais diversificadas e com custo menor em comparação ao etanol, além de promover um manejo mais sustentável de resíduos orgânicos (incluindo lixo sólido, esgoto, dejetos provenientes da criação de animais e resíduos do processamento industrial de produtos agropecuários), favorece a segurança energética não apenas por uma menor dependência com relação à Bolívia mas também por uma maior descentralização da produção do combustível que favoreça a implementação de planos de contingência para manter o fornecimento o mais estável possível em resposta a intercorrências em uma ou mais usinas de biogás/biometano, facilitando a continuidade de serviços essenciais como táxis e até o patrulhamento policial em regiões onde já são usadas viaturas aptas ao uso do gás natural.

O gás natural está longe de ser "milagroso", sendo necessário levar em conta diferentes fatores que influenciam nas condições operacionais do veículo antes de decidir por uma conversão, mas também não chega a justificar uma rejeição imediata motivada basicamente pela "cultura" da gambiarra que infelizmente se alastrou no mercado de conversões para gás natural veicular pelo Brasil às custas da durabilidade e eficiência de uma parte considerável da frota circulante. A bem da verdade, a transição do gás natural de origem fóssil para o biogás/biometano pode se articular ao óleo diesel convencional e substitutivos mais tradicionais como o biodiesel e até óleos vegetais brutos, reforçando a segurança energética brasileira e ainda proporcionando uma compensação de emissões mais efetiva. Enfim, apesar de combustíveis gasosos em geral serem alvo de polêmicas, é difícil negar a importância que o gás natural e o biogás/biometano passaram a ter na matriz energética do transporte.

Um comentário:

  1. Pode ser uma boa chance para que o interior dos estados seja suprido com gás, mas para trabalho pesado eu acho pouco provável que funcione melhor que o biodiesel ou o óleo vegetal puro em veículos e maquinaria para serviço pesado.

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Nem sempre é viável manter as relações de marcha originais após converter um veículo para Diesel, em função dos regimes de rotação diferenciados. Portanto, uma alteração das relações de diferencial ou até a substituição do câmbio podem ser essenciais para manter um desempenho adequado a todas as condições de uso e a economia de combustível.

It's not always viable to retain the stock gear ratios after converting a vehicle to Diesel power, due to different revving patterns. Therefore, some differential ratio or even an entire transmission swap might eventually be essential to enjoy a suitable performance in all driving conditions and the fuel savings.

Mais informação sobre relações de marcha / more info about gear ratios
http://dzulnutz.blogspot.com/2016/03/relacao-de-marcha-refletindo-sobre.html