sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Uma reflexão sobre os atuais dilemas do downsizing em motores de ignição por faísca

Em meio a cenários regulatórios mal-formulados e com intuito meramente arrecadatório, o downsizing conquistou espaço como uma das principais estratégias da indústria automobilística para conciliar desempenho, uma tributação mais favorável, e o cumprimento de normas de emissões cada vez mais rigorosas e até certo ponto irrealistas. Enquanto motores de ignição por faísca dotados de indução forçada por turbocompressor e cilindrada reduzida passam a conquistar espaço mesmo em segmentos onde a alta cilindrada frequentemente acompanhada por uma maior quantidade de cilindros era vista como uma distinção de prestígio e sofisticação, no entanto, surgem novas dúvidas quanto à real eficácia de tais medidas no tocante à preservação ambiental e, principalmente, como uma alternativa viável frente ao Diesel.

A evolução tecnológica que atingiu os turbocompressores ao longo dos últimos 20 anos é, sem sombra de dúvidas, uma das principais razões que levou a uma maior aceitação em todos os segmentos de mercado. Desde a redução da inércia mediante o uso de materiais mais leves e um perfil aerodinamicamente otimizado das palhetas dos rotores de turbinas e compressores, passando pela sofisticação do turbo de geometria variável até a integração com o sistema de gerenciamento eletrônico de injeção e ignição dos motores, o incômodo atraso na pressurização conhecido como "turbo-lag" torna-se menos intenso e portanto o desempenho sofre menos alterações nas distintas condições de temperatura e pressão atmosférica que possam ser encontradas durante a operação do veículo. Comparado ao supercharger de acionamento mecânico, mais conhecido como "blower" e que foi muito usado pela Mercedes-Benz (com a denominação Kompressor) até poucos anos atrás, o turbo também proporciona uma compensação de altitude mais eficaz ainda que às custas de uma velocidade mais elevada que o conjunto rotor atinge conforme o ar torna-se mais rarefeito.
De fato, o turbocompressor não deixa de ser um bom aliado tanto do desempenho quanto das emissões, visto que a menor variação da massa de ar admitida pelo motor ao menos em tese também deveria levar a uma combustão mais completa. No entanto, o resultado acaba não se mostrando tão satisfatório à medida que se depositam expectativas exageradas no dispositivo como uma justificativa para impor fatores de carga mais elevados que podem colocar em xeque não apenas a durabilidade mas também o impacto na eficiência geral em diferentes veículos e condições de uso. As emissões de óxidos de nitrogênio (NOx), calcanhar-de-Aquiles do ciclo Diesel e pivô do escândalo de emissões envolvendo a Volkswagen no ano passado, também se tornam problemáticas num motor de ignição por faísca submetido a fatores de carga elevados que acabam resultando em um aumento excessivo da temperatura do motor, a ser contornado mediante enriquecimento na proporção de combustível pela massa de ar admitida pelo motor e portanto anulando a proposta de uma redução no consumo que seria o principal argumento a favor da introdução de motores cada vez menores.

Seria equivocado negligenciar a maior presença da injeção direta em motores de ignição por faísca, tanto naturalmente aspirados como o 2.0 Duratec Direct usado no Ford Focus quanto turbo como o 1.4TSI que a Volkswagen aplica ao Golf. Uma das justificativas para tal recurso é a redução nos riscos de ocorrência da pré-ignição (detonação/"batida de pino") ao operar com gasolina e uma taxa de compressão mais elevada e otimizada para o etanol mas, com o combustível injetado nas câmaras de combustão ainda na fase líquida e cuja vaporização passa a depender do aquecimento aerodinâmico ao qual a carga de admissão é submetida pela compressão, as emissões de hidrocarbonetos crus também sofrem um incremento. Ainda que os vapores não-queimados de gasolina e/ou etanol e resquícios oleosos recirculados do cárter para a admissão pela blow-by não sejam tão nítidos a olho nu como o material particulado expelido por motores Diesel com um débito de injeção excessivo, são igualmente problemáticos tanto pela contaminação atmosférica quanto pelo desperdício de recursos energéticos.
A recente introdução no mercado brasileiro de uma versão do Golf equipada com o motor 1.0TSI também fomenta discussões. Chegou a haver alguma dúvida quanto à real possibilidade dessa aplicação, considerando a relação que se faz entre a cilindrada e o prestígio de um veículo principalmente em função do viés um tanto depreciativo que norteou a implementação de uma alíquota diferenciada do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para veículos equipados com motor de até 1000cc no começo da década de '90 com os chamados "carros populares". O impacto do custo de produção mais elevado que acompanha os conceitos do downsizing tornando improcedente o estigma de "pobreza" frequentemente associado a essa faixa de cilindrada já seria suficiente para justificar uma cilindrada ligeiramente maior, esbarrando apenas numa estrutura tributária que não trata a eficiência energética como verdadeira prioridade. Nesse contexto, cabe uma menção especial à Peugeot pela "ousadia" de trazer o motor PureTech de 3 cilindros apenas com a cilindrada de 1.2L ao invés de vir acompanhado pela versão de 1.0L disponível no exterior. Mesmo considerando que no mercado brasileiro o PureTech ainda é comercializado apenas naturalmente aspirado, ao compararmos os valores de potência e torque do 1.0 e do 1.2 nas respectivas faixas de rotação, não é difícil deduzir que sob um ponto de vista mais técnico que burocrático a decisão da Peugeot foi acertada. Convém frisar também a questão das emissões, nesse caso baseando-se em especificações do mercado europeu onde o 1.0 de acordo com o padrão de testes NEDC emitiria 102g/km de dióxido de carbono (CO² - "gás carbônico") e o 1.2 em especificação padrão emite 104g/km, embora esteja também disponível uma especificação de baixas emissões restrita a 99g/km sem prejuízos ao desempenho do motor.

Em meio a polêmicas recentes quanto ao impacto efetivo do downsizing sobre as emissões de poluentes, a medida começa a ser posta em xeque por fabricantes que já revelam um interesse em recorrer a uma redução menos drástica da cilindrada e taxas de compressão mais moderadas, não apenas para que as condições do processo de combustão permaneçam menos propícias à formação de NOx mas que um enriquecimento da proporção ar/combustível com o intuito de evitar superaquecimento também se torne desnecessário. Há precedentes históricos para tal estratégia, embora o objetivo nem sempre estivesse relacionado às emissões. Enquanto nos Estados Unidos a cilindrada até hoje não exerce tanta influência sobre o regime tributário ao qual os veículos estão submetidos, favorecendo a preferência local por motores enormes e de uma concepção considerada obsoleta por concorrentes europeus e japoneses, no Brasil a prioridade era compensar a baixa octanagem da gasolina quando a potência declarada pelo fabricante tinha um peso maior que a cilindrada na composição das alíquotas de impostos.

Por mais que no mercado brasileiro o downsizing seja enaltecido como uma espécie de "prêmio de consolação" por críticos ferrenhos de uma eventual liberação do Diesel em veículos leves, como é o caso do jornalista Fernando Calmon e de alguns políticos corruptos que fizeram de tudo para afundar a Petrobras, criou-se toda uma expectativa que está se mostrando incoerente com a realidade. Toda tecnologia automotiva envolve algum comprometimento, e as prioridades do projeto devem ser claramente definidas. Enfim, mesmo diante de um cenário regulatório que prioriza o parasitismo estatal em detrimento da eficiência energética, o downsizing que parecia "milagroso" para conciliar metas de redução do consumo de combustível e emissões com o desempenho desejado pelo consumidor também pode, dependendo da proporção, se tornar um tiro no pé.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

México: um mercado particularmente desafiador

Um dos principais mercados automobilísticos latino-americanos, o México reúne características um tanto peculiares até em função da geografia. Ainda que a proximidade dos Estados Unidos exerça uma considerável influência, motivada até mesmo pela escala de produção destinada a exportações, o acesso direto tanto ao Oceano Atlântico quanto ao Oceano Pacífico torna-se convidativo tanto a fabricantes europeus quanto asiáticos que tenham algum interesse em comercializar veículos no México. Normas de segurança e emissões mais flexíveis que as aplicadas nos Estados Unidos e no Canadá também atraem alguma competição para deixar o mercado mais agitado. No entanto, quando se trata de combustíveis alternativos e da oferta de automóveis com motor Diesel, o cenário se mostra um tanto menos diversificado e competitivo do que seria de se esperar...

O preço relativamente baixo dos combustíveis, cuja importação e comercialização estiveram por muito tempo monopolizadas pela estatal Pemex até a liberalização das importações em 2013 seguida pela entrada de outras bandeiras no downstream mexicano, ainda faz com que caminhonetes full-size tradicionais de concepção americana como as RAM 1500 e 2500 mantenham no México uma popularidade considerável, não apenas como veículo particular mas também em aplicações profissionais. Ainda que o estereotípico V8 americano não viesse experimentando uma evolução significativa desde a década de '50, e a variedade no México permanecido mais concentrada nos small-block, de certa forma a percepção da ignição por faísca como mais simples e barata também fomenta um interesse menor pelo Diesel entre os mexicanos. Ironicamente a massificação do turbocompressor em aplicações automotivas que se mostra tão útil para reduzir o decréscimo de potência sofrido em grandes altitudes como se encontra nas regiões centrais do México, começou pelo Diesel. Essa situação está se refletindo numa menor competitividade em alguns mercados de exportação, incluindo o Brasil que deixou de ser abastecido pela produção mexicana para não abrir mão do motor Cummins ISB6.7 que atualmente só é oferecido em versões das pick-ups RAM fabricadas nos Estados Unidos.

Naturalmente, coube a fabricantes de origem européia como a Volkswagen o pioneirismo nas tentativas de estabelecer o Diesel num mercado de certa forma ainda acomodado diante da manutenção de preços artificiais para os combustíveis. Até para aproveitar a escala de produção de modelos como o Jetta TDI destinado aos mercados americano e canadense antes que a eclosão do escândalo "Dieselgate" pusesse muito a perder, por algum tempo a Volkswagen pleiteou junto ao governo mexicano que os motores Clean Diesel fossem reconhecidos como uma estratégia para redução dos problemas associados à poluição do ar por veículos automotores e obtivessem vantagens hoje aplicadas aos híbridos, aos elétricos puros e aos combustíveis gasosos como a dispensa das restrições impostas pelo programa Hoy No Circula (equivalente ao rodízio de placas que se aplica em São Paulo) na Zona Metropolitana do Vale do México e adjacências. Hoje, a oferta da Volkswagen de modelos equipados com motor Diesel para o México se limita às caminhonetes, como a Amarok que por lá também é importada da Argentina.

Sem dúvida um dos destaques levantando a bandeira do Diesel no mercado mexicano é a Peugeot, que além de consolidar esse tipo de motorização como a única disponível para a linha de utilitários também oferece em modelos de entrada como o sedan 301 e o hatch 208. Ainda que o conforto do câmbio automático esteja reservado para quem opta pelo motor 1.6VTi a gasolina de aspiração natural com 115cv no 301 e 120cv no 208, a vantagem de quase 50% no torque do motor 1.6HDi turbodiesel de 92cv é convidativa. Por mais que desavisados acabem iludidos apenas pela potência, esquecendo também o impacto mais severo das variações de altitude sobre os motores naturalmente aspirados em comparação aos turbocomprimidos e a importância do correto escalonamento das relações de marcha para que o desempenho seja otimizado nas mais diversas situações, não custa recordar o que Carroll Shelby já dizia sobre a potência vender carros enquanto o torque vence as corridas...
Num primeiro momento a adaptabilidade do ciclo Diesel a combustíveis alternativos pode parecer uma vantagem incontestável, mas a experiência mexicana mais limitada ao gás liquefeito de petróleo (GLP - o nosso "gás de cozinha" que no Brasil é proibido para fins automotivos) e a recente introdução do gás natural promovida pela multinacional espanhola Gas Natural Fenosa a partir de Monterrey ainda garantem uma sobrevida para a ignição por faísca. A regulamentação de conversões bicombustível Diesel-GLP, mesmo que estejam aproximadamente 120% mais caras que a conversão de um veículo a gasolina, já pode ser considerada um avanço quando lembramos que no Brasil a combinação entre o óleo diesel e o gás natural permanece numa escala quase experimental. Em aspectos práticos, apesar do comprometimento da capacidade de carga dos veículos após a instalação do sistema de gás, a dispensa do esquema Hoy No Circula também serve de atrativo para as conversões. Ainda que o GLP atualmente seja encontrado com mais facilidade (ou melhor dizendo menos dificuldade) no México, o gás natural tem vantagens devido à maior segurança do sistema de combustível e à viabilidade de uma substituição pelo biometano que já é reconhecido pela EPA americana como um "combustível avançado" e pode ser produzido a partir de qualquer resíduo orgânico, incluindo subprodutos de baixo valor comercial resultantes do beneficiamento de gêneros alimentícios.
Outro aspecto que vai sempre merecer uma observação quando nos referimos ao México é o consumo intenso do milho e derivados e as possibilidades que tal hábito oferece para fomentar o desenvolvimento da agroenergia. Não se pode deixar de lembrar que a utilidade do cereal como matéria-prima para o etanol, por mais incrível que possa parecer inicialmente, tem um impacto até menor sobre a disponibilidade e o preço de alimentos em comparação à cana-de-açúcar, visto que o chamado "grão de destilaria" (DDG - distillation-dried grain) apresenta um teor proteico elevado e ainda pode servir como ingrediente na preparação de especialidades da cozinha mexicana como as tortillas nas quais se baseia o popular taco mexicano. A bem da verdade, por mais que o baixo rendimento em litros por hectare se mostre aceitável diante do impacto quase insignificante sobre a segurança alimentar, não deixa de surpreender que a pauta dos biocombustíveis permaneça um tabu nesses tempos em que até a Coca-Cola mexicana já é adoçada com xarope de glicose de milho ao invés do açúcar de cana. Além do etanol, o óleo de milho tanto virgem quanto reaproveitado de usos culinários oferece algum valor como recurso energético renovável para produção de biodiesel ou em aplicação direta como combustível não apenas para veículos mas também para fins estacionários e industriais.

Até certo ponto não surpreende que os biocombustíveis ainda não sejam levados muito a sério no México, embora as perspectivas para uma mudança nesse cenário se mostrem iminentes diante da liberalização dos preços da gasolina e do óleo diesel como reflexo do fim do monopólio da Pemex. Mais uma vez, a proximidade com os Estados Unidos pode ser crucial para definir as estratégias destinadas a promover um ou mais combustíveis alternativos, Não se pode portanto ignorar a ênfase que fabricantes como a General Motors dão ao etanol, como se observa na atual geração do Cadillac Escalade que é oferecida exclusivamente com um motor flexfuel apto a operar tanto com gasolina quanto com etanol E85 ou ambos os combustíveis misturados em qualquer proporção Nesse contexto, é de se esperar que a experiência americana com o uso do milho na produção do combustível acabe por influenciar os mexicanos apesar de todas as controvérsias.

Enfim, um mercado bastante complexo como o mexicano, cujo alto volume de vendas somado a uma posição geográfica se revelam convidativos a uma oferta tão diversificada, exige soluções igualmente complexas na busca por uma renovação da matriz energética. Mesmo nesses tempos pós-Dieselgate, há oportunidades tanto para o etanol e o biometano quanto para o biodiesel, podendo também retomar a competitividade da indústria automotiva mexicana em mercados de exportação. Portanto, ao invés de fazer uma mera cópia das políticas americanas de combustíveis alternativos que às vezes também se mostram equivocadas e em desacordo com as reais necessidades de proprietários, usuários e operadores de veículos, é importante que o México dê mais atenção às vantagens que uma maior presença do Diesel em aplicações automotivas leves podem agregar para a segurança energética.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Uma reflexão sobre o etanol e o biogás/biometano como complementos para o biodiesel e o uso direto de óleos vegetais como combustível

Não é de hoje que a forte dependência do transporte rodoviário pelo óleo diesel convencional, tanto para cargas quanto para passageiros, é apontada como um dos pretextos para barrar propostas de uma liberação do uso de motores do ciclo Diesel em veículos leves. Uma certa acomodação em torno do etanol e do gás natural como alternativas mais "sustentáveis" também servem para acirrar discussões, que já avançam até para propostas em torno do uso desses combustíveis alternativos não apenas como substitutivos para a gasolina em automóveis, utilitários leves e motocicletas e assemelhados mas até mesmo para o óleo diesel convencional em caminhões e ônibus.
A bem da verdade, tanto o biodiesel quanto o uso direto de óleos vegetais brutos como combustível veicular se mostram adequados às necessidades de muitos operadores pelo país afora, não apenas no segmento rodoviário mas também em aplicações fora-de-estrada como na agricultura e na navegação. É uma solução tecnicamente simples, e com a possibilidade de articular a oferta dos combustíveis com o perfil da produção agropecuária de cada região do país, viabilizada diante da idade média avançada da frota comercial brasileira e também da defasagem nas regulamentações de emissões para motores destinados a aplicações não-rodoviárias. Temores quanto a um impacto na disponibilidade e custo de alimentos também podem ser rebatidos em função do reaproveitamento de óleos vegetais descartados de aplicações culinárias e industriais, bem como da utilização de algumas oleaginosas energéticas em rotações de cultura para favorecer a retenção de nitrogênio no solo durante a entressafra de alguns cultivares alimentícios cujo metabolismo apresente um alto consumo desse elemento. Além da mamona que se desenvolve facilmente em solos pobres e melhora a qualidade dos mesmos, ou do pinhão-manso (também conhecido como "purgueira" ou "pinha de purga" em alguns países lusófonos da África) que pode ser usado para cercamento vivo em áreas de pastagem, vale lembrar a viabilidade de se usar espécies do gênero Salicornia em áreas litorâneas devido à viabilidade do uso de água salgada ou salobra para irrigação das mesmas.

A adaptabilidade dos motores do ciclo Diesel ao funcionamento com combustíveis alternativos sem grandes prejuízos ao desempenho já é notória, tornando-os essenciais em aplicações de segurança e defesa nas quais uma grande variação nas especificações dos combustíveis pode ser encontrada. Em que pesem as diferentes normas ambientais e exigências de dispositivos de controle de emissões entre as aplicações militares e civis, chega a soar estúpido que tal característica não seja muito explorada num país fortemente dependente do óleo diesel convencional como é o caso do Brasil. A bem da verdade, não faltaram iniciativas para mudar essa realidade, como o PLS 81/2008 de autoria do ex-senador Gilberto Goellner que previa benefícios fiscais ao uso direto de óleos vegetais como combustível para aplicações vinculadas ao setor agropecuário mas acabou engavetado. Preocupações com a qualidade do ar nas regiões metropolitanas, frequentemente apontadas como outro pretexto contra a liberação do Diesel para veículos leves, também deveriam servir de subsídio para uma busca por alternativas mais limpas ao óleo diesel convencional para atender a setores como o transporte coletivo urbano de passageiros, mas na prática o biodiesel e os óleos vegetais continuam sendo tratados com descaso apesar de serem tecnicamente viáveis.

Sob o ponto de vista do custo inicial, opositores de uma liberação do Diesel alegariam uma maior simplicidade dos motores de ignição por faísca e sistemas de controle de emissões associados aos mesmos. Porém, modelos como o Peugeot 508 e o Lexus NX jogam por terra essa teoria ao serem oferecidos no mercado brasileiro apenas com motores a gasolina dotados de sistemas como a injeção direta e o turbocompressor com o intuito de alcançar uma eficiência mais próxima a padrões antes associados ao ciclo Diesel. A injeção direta acaba por ser a mais controversa dessas características, tendo em vista que torna menos expressivas as vantagens da ignição por faísca como a menor emissão de óxidos de nitrogênio (NOx) e a solubilização de vapores oleosos provenientes da ventilação positiva do cárter (PCV - positive crankcase ventilation) para que não se acumulem retendo impurezas nas paredes do coletor de admissão.

Também há de se levar em conta a possibilidade de explorar ainda resíduos tanto do cultivo quanto do beneficiamento das oleaginosas para integrar a produção de óleo combustível com etanol e biogás/biometano. A torta da prensagem das sementes, além de ser usualmente reaproveitada tanto na formulação de ração animal no caso de espécies alimentícias como o girassol ou como fertilizante agrícola orgânico no caso da mamona, também pode ser processada através de biodigestores para que a produção de gás combustível seja agregada à operação, aumentando a rentabilidade. Outras partes da planta, como talos e folhas, também podem vir a ter algum valor agregado mediante o uso como matéria-prima para etanol celulósico, eventualmente aplicável também como reagente na transesterificação do óleo vegetal para produção de biodiesel.

Um dos cultivares mais rodeados de mitos no tocante à aplicabilidade na indústria agroenergética é o milho, alvo constante de comparações com a cana-de-açúcar quando destinado à produção de etanol devido ao volume menor por hectare. Entretanto, deveriam ser levadas em consideração as diferenças entre as demais aplicações alimentícias tanto da cana quanto do milho. Além do valor energético, tanto na concentração de carboidratos que podem servir para a produção do etanol quanto de lipídeos adequados ao biodiesel, é injusto ignorar o uso do milho como substrato proteico tanto na alimentação humana quanto elaboração de rações para animais, e nesse caso o "grão de destilaria" (DDG - distillation-dried grain) resultante da produção de etanol se destaca por apresentar uma concentração de proteínas superior à do grão de milho in natura. É natural que a questão dos subsídios agrícolas nos Estados Unidos aumente as polêmicas em torno à real viabilidade como matéria-prima para a indústria agroenergética, mas não há uma real justificativa para o desprezo ao milho.
Também é conveniente recordar que a maltodextrina, principal carboidrato presente no milho, não é processada pelo sistema digestivo de ruminantes, convertendo-se em metano que é liberado diretamente na atmosfera através da eructação e da flatulência do gado, e portanto o conteúdo energético seria melhor aproveitado através da produção de etanol mesmo com as eventuais perdas por evaporação que até não tem um peso tão significativo para o alegado aquecimento global antropogênico como aconteceria com o metano. De fato, seria inviável promover uma substituição total do açúcar e do etanol de cana por derivados do milho, como é o caso do xarope de glicose (também conhecido como "xarope de milho com alta concentração de frutose" ou "mel Karo", embora atualmente o xarope da marca Karo comercializado no Brasil tenha uma maior concentração de sacarose de cana) que é muito usado para substituir o açúcar em países onde as condições são menos favoráveis ao cultivo canavieiro, mas não se deve ignorar as possibilidades de uma integração do milho até mesmo como uma alternativa para promover a segurança energética brasileira durante a entressafra da cana.

Afastados alguns temores quanto à disponibilidade dos combustíveis ao longo do ano, cabe avaliar as melhores opções de acordo com o tipo de veículo e a operação que vá ser efetuada. Para os táxis, cuja operação normalmente é mais regionalizada e envolve distâncias curtas, as pontuais desvantagens do gás natural no tocante ao volume ocupado pelo sistema de combustível e o peso agregado ao veículo podem até não fazer tanta diferença principalmente quando leva-se em consideração o custo de aquisição reduzido que ainda caracteriza os motores de ignição por faísca em comparação com um Diesel de desempenho comparável. É um segmento que se destaca pelo sucesso do Fiat Grand Siena Tetrafuel, atualmente o único veículo que já sai de fábrica preparado para funcionar com gás natural no mercado brasileiro e um dos modelos mais usados como táxi hoje em Porto Alegre.

Não se pode ignorar que cenários operacionais distintos viriam a apresentar condições específicas que tenderiam a favorecer a um determinado combustível alternativo mais que a outros. Caminhões de lixo, por exemplo, são mais adequados a experiências com o biogás/biometano por ser gerado de forma espontânea nos aterros sanitários e ter um custo próximo do zero após passar pelos processos de filtragem para que possa ser usado com segurança como combustível veicular. Tratores também podem oferecer condições adequadas ao uso de combustíveis gasosos, como já ocorre em alguns parques industriais e complexos hospitalares embora seja dada uma ênfase maior ao gás liquefeito de petróleo (GLP - "gás de cozinha"). Por exemplo, nada impede que um trator Agrale 4.100 Industrial originalmente movido a GLP seja convertido para gás natural e possa ser abastecido com biometano, ou que um conjunto mecânico semelhante venha a ser aplicado a versões agrícolas para fazer uso de um combustível que pode ser gerado em qualquer propriedade rural a partir de resíduos diversos tanto de origem vegetal quanto animal de modo a evitar desabastecimentos durante entressafras.

Nada impede que o biogás/biometano venha a ser usado para promover uma substituição apenas parcial do óleo diesel convencional ou do biodiesel e óleos vegetais brutos tanto em aplicações veiculares quanto estacionárias como em grupos geradores de acordo com a disponibilidade dos combustíveis em cada região. Ao ser aspirado junto com o fluxo de admissão, acaba por absorver ao menos uma parte do calor latente de vaporização e reduzindo a temperatura da massa de ar, levando a uma menor formação de NOx durante o processo de combustão. Também ocorre uma diminuição na concentração de oxigênio nas câmaras de combustão, a ser compensada com um débito menor da injeção do combustível principal para que se mantenha a correta proporção estequiométrica, no entanto a propagação de chama mais rápida e a combustão mais completa fazem com que não haja prejuízo ao desempenho. A combinação entre o combustível gasoso e o óleo diesel convencional ou biodiesel e óleos vegetais tem, na prática, menos desvantagens que o uso do EGR para promover a recirculação de uma parte dos gases de escape com a intenção de reduzir a concentração de oxigênio e o aquecimento aerodinâmico por compressão que favoreceriam a formação dos NOx, mais notadamente a queda nas emissões de material particulado e um efeito mais benéfico sobre o processo de combustão como um todo.

Também é válido recordar que a maior parte da uréia industrial hoje usada para elaboração da solução-padrão ARLA-32/ARNOx-32/AdBlue/DEF aplicada ao sistema SCR para redução dos NOx é sintetizada a partir do gás natural, o que além de não trazer nenhum benefício ao processo de combustão ainda desperdiça recursos energéticos. Nessa circunstância, tanto o biogás/biometano quanto o etanol ao serem usados em injeção suplementar se revelam vantajosos. Enfim, além de promover um melhor aproveitamento do potencial das commodities agroenergéticas, a integração do biogás/biometano e do etanol em complemento ao biodiesel e óleos vegetais é uma boa opção para contornar eventuais riscos de desabastecimento que pudessem estar associados à liberação do Diesel em veículos leves no mercado brasileiro.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Uma breve reflexão sobre o fracasso das políticas para o gás natural na Venezuela

Não é de hoje que o gás natural vem sendo enaltecido como um combustível "limpo" e seguro para substituir ao menos em parte a demanda por gasolina e até mesmo o óleo diesel convencional tanto em países desenvolvidos quanto no terceiro mundo. À primeira vista, o custo de processamento inferior em comparação ao observado com os derivados de petróleo se mostra atrativo, refletindo também num preço menor para o usuário final. Encontrado tanto em bolsões isolados quanto em proporções vestigiais nas bacias petrolíferas, deixou de ser tratado como um mero subproduto da extração de petróleo e passou a uma condição de protagonismo no mercado energético.

Mesmo em países produtores e exportadores de petróleo onde os preços dos derivados no mercado interno são fortemente subsidiados, como é o caso da Venezuela, o gás chegou a ser apontado como uma opção para reduzir o déficit gerado por essas políticas, liberando assim uma maior quantidade de gasolina e óleo diesel para operações mais lucrativas de exportação com o preço atrelado às cotações internacionais. No entanto, ao contrário do que ocorre em países mais dependentes da importação de recursos energéticos, as vantagens econômicas do gás natural acabam não sendo consideradas tão relevantes pelo consumidor final acomodado diante do preço simbólico da gasolina venezuelana. O impacto negativo do peso e volume dos sistemas de gás natural veicular sobre a capacidade de carga, bem como a rede de abastecimento muito limitada, também leva o combustível alternativo a ser desacreditado na Venezuela. A imposição de uma cota mínima de 50% de todos os carros e utilitários leves 0km a ser preenchida por modelos aptos ao uso do gás, mediante decreto do então ditador Hugo Chávez em 2009 e ainda em vigor, não foi suficiente para atrair um interesse tão significativo do público nem mesmo com o custo da conversão coberto pela Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA) e o combustível sendo distribuído gratuitamente. A perda de espaço no compartimento de bagagens, e interferência com o rebatimento dos bancos traseiros quando aplicável, também desencoraja eventuais usuários e até leva alguns compradores a removerem o sistema de gás natural quando adquirem um veículo 0km.

Somente com os aumentos recentes de preço da gasolina no mercado interno venezuelano na ordem de 5400% que algum interesse vem se reacendendo junto ao público, esbarrando porém numa queda no número de postos de abastecimento que ainda oferecem o gás e na desistência de algumas oficinas mecânicas em fazer as conversões diante da escassez de kits de adaptação que deveriam estar sendo fornecidos pela PDVSA. A bem da verdade, chegaram a ser instalados postos exclusivos para a comercialização de gás natural que nunca entraram em operação em algumas cidades, como por exemplo García de Hevia, localizada no estado Táchira que em outros tempos foi um importante pólo agropecuário e poderia estar até mesmo aproveitando para iniciar uma transição do gás natural de origem fóssil para o biogás/biometano a ser gerado com resíduos do beneficiamento industrial de carnes. Assim, ocorre na Venezuela exatamente o oposto do que seria de se esperar de um programa sério para substituição da gasolina, embora esteja nitidamente de acordo com o padrão de incoerência e mediocridade da esquerda latino-americana.

Por mais que o anteriormente desprezado gás natural pudesse ser apontado como uma medida eficaz para atenuar o colapso iminente da economia venezuelana fortemente dependente da exportação de derivados de petróleo, e a presença maciça dos motores de ignição por faísca mesmo em aplicações comerciais e utilitárias em geral consolidada exatamente em função dos subsídios à gasolina que empurram a Venezuela para a falência, o programa AutoGas foi mais uma ação meramente midiática do chavismo. Ainda que não seja capaz de atender às necessidades e expectativas de muitos usuários, é evidente que o gás natural fracassou na Venezuela simplesmente por incompetência política.