quinta-feira, 31 de março de 2016

Relação de marcha: refletindo sobre alguns aspectos relevantes

Esse é um tema frequente não apenas em perguntas de leitores, mas também em grupos de discussão com os mais diversos propósitos desde o desempenho até a economia de combustível. E de fato, o correto dimensionamento da transmissão de acordo com o motor pode fazer com que tenha um equilíbrio entre tais parâmetros. Desde o espaçamento entre as marchas até a relação final do diferencial, há um longo percurso para se definir como serão aproveitadas (ou desperdiçadas) as curvas de potência e torque um tanto distintas entre motores de ignição por faísca e um Diesel destinado à mesma aplicação.

Ao contrário do que possa inicialmente parecer, uma relação mais "alta" ou "longa" da marcha ou do diferencial vai ser numericamente inferior a uma "baixa", "curta" ou "reduzida". O número reflete a chamada "desmultiplicação" da rotação do motor, diretamente proporcional à multiplicação do torque transmitido. No caso das marchas, quantos giros do motor são necessários para que o eixo de saída do câmbio dê uma volta completa, enquanto no diferencial reflete quantos giros do câmbio são necessários para que as rodas deem uma volta completa. Portanto, um diferencial com relação 3,73 vai ser mais longo que um com relação 4,88 por exemplo.

Marchas mais curtas favorecem a agilidade nas arrancadas e a capacidade de transposição de aclives, além de "segurar" mais facilmente o veículo num declive, enquanto marchas mais longas favorecem tanto a manutenção de uma velocidade de cruzeiro a regimes de rotação menores quanto proporcionam uma velocidade final mais elevada. No caso dos motores Diesel, tendo em vista que as faixas úteis de rotação normalmente são mais estreitas, um espaçamento mais amplo entre as marchas (wide-ratio) associado a um diferencial mais longo tende a proporcionar um menor compromisso entre a agilidade nas arrancadas e retomadas e a velocidade máxima, ainda que em casos específicos a maior disponibilidade do torque a baixas rotações já possa de certa forma equiparar o desempenho de um veículo com motor Diesel e diferencial mais longo a um similar com motor de ignição por faísca e os mesmos espaçamentos entre as marchas.

Vem sendo um tanto frequente que automóveis com câmbio manual tenham relações de marcha excessivamente próximas (close-ratio) que, se por um lado agradam a quem vê pretensões mais "esportivas" nessa configuração, deixa as respostas do veículo mais comprometidas de acordo com as relações das marchas e do diferencial. Para compensar desvantagens inerentes a essa característica, acaba-se recorrendo a uma maior quantidade de marchas para ampliar o espaçamento total (spread), invariavelmente agregando peso e atritos internos ao conjunto de transmissão. Mesmo com a evolução nos processos de fabricação e nos materiais, seria incoerente descartar vantagens de uma configuração mais simples em algumas condições operacionais.

Além de alguns câmbios usados em conjunto com motores de ignição por faísca serem menos tolerantes aos pulsos de torque mais vigorosos e concentrados em regimes de rotação mais baixos inerentes ao Diesel, a inadequação das relações de marcha e diferencial podem fazer com que o veículo pareça mais "amarrado" no tráfego rodoviário. Definir uma solução "milagrosa" para esse dilema seria pedir demais, e portanto o mais razoável ainda é definir as prioridades e levar em consideração as peculiaridades de cada motor e os diferentes cenários operacionais aos quais o veículo estará sujeito para que a escolha do conjunto de transmissão seja a melhor possível.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Mais um Peugeot 504 para instigar a reflexão

De vez em quando eu me deparo com esse Peugeot 504, originalmente uma pick-up de cabine simples que acabou passando por uma "duplagem" de cabine ficando com um aspecto mais próximo a um sedan improvisado. A capacidade de carga nominal de 1300kg anterior à modificação já servia de pretexto para que o modelo pudesse contar com o motor Diesel sem entrar em contraponto com as regulamentações brasileiras, mas naturalmente a capacidade de carga efetiva sofre algum decréscimo após a modificação da carroceria ainda que para fins de registro e licenciamento prevaleça a capacidade nominal mesmo que o peso acrescentado ao veículo hipoteticamente o tornasse apto a carregar menos de 1000kg. Também é interessante observar que a nova configuração da carroceria não é das mais práticas para acomodar cargas mais volumosas, característica comum em sedans originais de fábrica devido à abertura limitada da tampa do porta-malas. Enfim, se um veículo utilitário que eventualmente tenha a capacidade de carga (tanto em peso quanto volumétrica, embora esse último parâmetro não seja levado em conta para fins de homologação) afetada por uma alteração de características ainda pode contar com o Diesel, as restrições hoje em vigor baseadas em capacidades de carga, passageiros ou tração que regulam esse "privilégio" se mostram incoerentes.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Opções de motor para adaptar no Lada Niva

A pauta de hoje foi motivada pelo crescente número de pedidos de leitores interessados no Lada Niva. Por mais que a tração 4X4 com reduzida já o credencie para o Diesel sem entrar em conflito com a burocracia brasileira, o tamanho do modelo e a oferta limitada de motores veiculares leves tornam-se um empecilho.

Ame ou odeie, mas é impossível ficar indiferente diante de um Lada Niva. Apelidado por alguns de "Range Rover soviético", o crossover derivado do Fiat 127 (equivalente ao 147 brasileiro) chegou a ganhar a simpatia de consumidores brasileiros durante a primeira metade da década de '90 por unir a tração 4X4 a um preço inferior ao de modelos nacionais (à época basicamente o Toyota Bandeirante, a Envemo Camper, e o Engesa que já estava na marca do pênalti) e chegava a ser mais em conta até que os modelos da Gurgel que contavam somente com tração traseira. Faltava apenas uma opção de motor Diesel, embora fosse disponível em outros mercados. O jeito, portanto, é recorrer a adaptações, como o caso desse exemplar equipado com o motor Volkswagen EA827 1.6D de injeção direta e 50cv originalmente usado na Kombi Diesel, na Saveiro e em versões exclusivas para exportação de Gol, Voyage, Parati, Passat, Santana e Quantum. Mas considerando o desempenho modesto desse motor na versão naturalmente aspirada e as relações de marcha originais muito curtas do Niva, ficaria entre as minhas últimas opções. A versão turbo, com 70cv, já proporciona um desempenho mais favorável ao uso misto, inclusive em rodovias.

Há ainda muitos outros motores Diesel aplicáveis ao Niva e que não exigiriam alterações muito profundas para serem acomodados sob o capô, desde os motores Peugeot XUD9 e DW8 de 1.9L com injeção indireta e aspiração natural que chegaram a equipar versões destinadas à Europa Ocidental e América Latina (sendo usados inclusive nas versões Bognor Diva e Diva Furgón montadas em regime de CKD no Uruguai) até o motor Fiat 1.3 Multijet usado nas versões atuais do Lada 4X4 (denominação usada depois que a General Motors passou a produzir e comercializar o Chevrolet Niva na Rússia e alguns países da região conhecida como "Comunidade de Estados Independentes" que se formou com a dissolução da União Soviética). Outros motores adequados a uma adaptação com um resultado mais próximo de um factory-fit seriam o Fiat "Super Diesel" de 1.7L na versão TD70 (que equipou versões de exportação do Fiorino, Palio/Weekend/Siena/Strada e Punto) e os motores modulares da série Pratola Serra, desde o aspirado de 1.9L e respectiva versão turbo (TD100) até o 2.0 Multijet usado no Jeep Renegade e na Fiat Toro, passando pelo 1.6 Multijet usado em diversos modelos no exterior. Há ainda alguns motores Peugeot como o 1.6HDi e 2.0HDi (o mesmo DW10 que chegou a equipar o Suzuki Grand Vitara em substituição ao vetusto Mazda RF).

Para quem prefere um motor Volkswagen, as possibilidades vão além do 1.6D, passando pelos 1.9D e 1.9TD ainda de injeção indireta até os SDI e TDI que já incorporam a injeção direta. A modularidade é o grande destaque, possibilitando a intercambialidade de peças com motores de ignição por faísca e facilitando a montagem de um "misto-quente", bem como uma certa liberdade para escolher entre injeção 100% mecânica ou diferentes opções para gerenciamento eletrônico como o "pumpe-duse" (que usa unidades de injeção individuais incorporando bomba e bico para cada cilindro) e o common-rail, e ainda aspiração natural ou diferentes configurações de sobrealimentação (turbo de geometria fixa ou variável, com ou sem intercooler). Ao menos as versões dotadas de injeção eletrônica common-rail também contam com 16 válvulas. A incorporação da antiga divisão de motores marítimos da Volkswagen na Cummins Marine Diesel também pode ser considerada favorável, visto que se torna mais uma alternativa para o fornecimento de peças de reposição no mercado brasileiro que sofre com a limitada oferta de motores Diesel leves devido a restrições ao uso em automóveis em função da capacidade de carga, passageiros ou tração.

Naturalmente não se pode esquecer dos motores asiáticos. São poucos os que tem alguma facilidade para contrabandear um motor Toyota 2C de 2.0L ou 3C de 2.2L ainda muito comuns no Paraguai mas que estão perdendo popularidade na Bolívia diante das políticas que vem priorizando o gás natural por lá, então é mais recomendável nos atermos a motores que já foram ou ainda são oferecidos regularmente no mercado brasileiro ainda que em versões destinadas a aplicações alheias ao segmento automotivo. Um exemplo é o Isuzu 4EE2 de 1.7L, que chegou a ser usado em versões de exportação de diversos modelos da Chevrolet mas no Brasil acabou restrito a versões náuticas comercializadas pela Mercruiser. Também não se deve desconsiderar os motores Yanmar TNV88 usados em alguns tratores, grupos geradores e no acionamento de compressores em equipamentos de refrigeração para caminhões ou containers frigorificados (ThermoKing, Recrusul, Carrier, entre outros), embora alguns ajustes na bomba injetora sejam desejáveis para atender ao uso veicular. Para quem prefere um motor originalmente destinado ao uso veicular, vale a pena considerar o Mitsubishi 4D56 usado na L200, na L300, no Pajero Sport e versões antigas do Pajero Full (também disponibilizado nos Kia Sorento de 1ª geração e o K2500/Bongo e nos Hyundai Gallopper, Terracan e HR), o Kia J2 da Besta e do K2700/Bongo e ainda o Mazda RF oferecido na 1ª geração da Kia Sportage.

Salientando que cada caso tem suas especificidades, como as regiões onde o veículo vá trafegar com mais frequência, as especificações do óleo diesel e eventuais substitutivos disponíveis com mais facilidade, e a proximidade da assistência técnica se surgir alguma necessidade, fica difícil definir a melhor "receita" para atender a uma ampla maioria dos interessados em converter um Lada Niva para o Diesel. Se por um lado pode soar razoável que um morador do Acre recorra a um motor Toyota 2C contrabandeado da Bolívia, por outro um catarinense poderia preferir buscar peças para um DW8 na Argentina, enquanto um morador do Guarujá tenha mais familiaridade com um motor Yanmar devido às aplicações náuticas. De qualquer forma, toda adaptação requer uma boa dose de paciência e alguns ajustes até que o resultado final fique ao gosto do proprietário do veículo.

domingo, 13 de março de 2016

Reflexão sobre a prisão de caminhoneiros que usam emulador de SCR

Tem chamado a atenção o número de ocorrências envolvendo não apenas a autuação, mas também prisões, de caminhoneiros e motoristas de ônibus equipados com dispositivos que desabilitam o sistema SCR para que os veículos não tenham a potência restrita ao operar sem o fluido-padrão ARLA-32/AdBlue destinado a promover a redução das emissões de óxidos de nitrogênio (NOx), e também de condutores usando fluido fora das especificações (32,5% de uréia em solução aquosa). Com tantas situações mais graves ocorrendo nas rodovias brasileiras, desde condutores desleixados praticando manobras perigosas deliberadamente até traficantes que destroem famílias com a maconha e o crack, passando pelo roubo de cargas que põe em risco a integridade física dos caminhoneiros e traz significativos prejuízos à economia do país, chega a ser intrigante que a Polícia Rodoviária Federal esteja mais mobilizada para fazer parte desse circo midiático armado pelo IBAMA.

Antes de mais nada, deve-se observar o contexto histórico dos emuladores de SCR, também conhecidos como "chip paraguaio" por chegarem ao território brasileiro normalmente passando pelo Paraguai, mas que na verdade são originários da Alemanha. Surgiram por volta de 2004, quando o AdBlue começou a ser usado em alguns caminhões europeus ocidentais para enquadrá-los nas normas Euro-4, tendo como objetivo manter o desempenho dos veículos que percorressem rotas internacionais passando por alguns países do leste europeu onde as normas de emissões menos rígidas inviabilizavam o suprimento do fluido-padrão. Vale recordar que a implementação das normas de emissões veiculares na União Européia segue cronogramas previamente estabelecidos, e com o devido comprometimento dos órgãos governamentais para garantir a disponibilidade dos insumos necessários ao correto funcionamento dos veículos e equipamentos especiais, passando pelo teor de enxofre do óleo diesel até a disponibilidade do AdBlue/ARLA-32 nos postos.

Traçando um paralelo entre a situação européia e a brasileira, já seria perfeitamente justificável o uso do emulador de SCR para atender rotas que passassem por Paraguai, Bolívia, Equador, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname, e até mesmo Uruguai, Argentina e Chile que apresentam irregularidades na oferta de óleo diesel com baixo teor de enxofre e ARLA-32/ARNOx-32/AdBlue entre o interior e regiões metropolitanas, mas antes devemos olhar para as incoerências que ocorrem no Brasil mesmo. Até 2011 ainda era liberada a venda de óleo diesel S-1800 (com 1800ppm de enxofre) no interior e até mesmo em algumas regiões metropolitanas, com o S-500 (500ppm de enxofre) restrito a algumas regiões metropolitanas e o S-50 (50ppm) restrito aos postos Petrobras e comercializado como Diesel Podium, e à época as normas Euro-3 ainda vigoravam. Como referência, vale salientar que o óleo diesel Euro-2 era o S-350 (350ppm de enxofre), que nunca foi oferecido regularmente no mercado brasileiro. Desde a introdução das normas Euro-5 no país em 2012, ficou autorizada apenas a comercialização dos óleos diesel S-500 e S-50 no varejo, com a substituição do S-50 pelo S-10 (10ppm de enxofre) a partir de 2013, enquanto o S-1800 ainda é oferecido por revendedores retalhistas a "grandes consumidores" com instalações próprias para estocagem do combustível e abastecimento dos veículos e equipamentos. A princípio, o óleo diesel S-500 seria permitido apenas em postos de beira de estrada e no interior, mas ainda pode ser encontrado normalmente em alguns postos dentro do perímetro urbano de Porto Alegre.

É clara a falta de comprometimento da ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) e do IBAMA, entre outros órgãos públicos que deveriam resguardar o cumprimento das leis não apenas da parte do cidadão mas também chamar os gestores públicos à devida responsabilidade. Considerando que a produção dos combustíveis derivados de petróleo ainda é muito mais centralizada, não seria impossível fazer com que as mesmas especificações fossem seguidas sem distinção das regiões onde os produtos são comercializados, de modo a assegurar a disponibilidade do óleo diesel de baixo teor de enxofre por todo o país, tendo em vista que são essenciais não apenas para o bom desempenho dos motores mais recentes mas também imprescindíveis para assegurar a durabilidade de sistemas de controle de emissões como o EGR (quando aplicável), o filtro de material particulado (DPF) e até mesmo o SCR. Vale destacar que o ARLA-32 também apresenta uma disponibilidade mais restrita, com poucos postos comercializando o fluido a granel enquanto outros não o oferecem nem em embalagens descartáveis. Há ainda o problema da venda irregular de ARLA-32 falsificado ou fora das especificações mas, ao invés de responsabilizar o fabricante do produto de qualidade duvidosa, quem acaba na mira da Polícia Rodoviária Federal é a vítima da pirataria que na maior parte dos casos é o caminhoneiro autônomo que não tem tanto poder de barganha junto a fornecedores idôneos em comparação aos "grandes consumidores".

Além de sofrer com a violência nas estradas, para a qual a Polícia Rodoviária Federal tem feito vista grossa, os caminhoneiros são espoliados com o custo dos pedágios e as despesas originadas pela intensificação do desgaste mecânico de veículos e implementos em decorrência do estado deplorável de conservação da malha viária brasileira, e ainda são intimidados para cumprir normativas que a bem da verdade permanecem em desacordo com a realidade nacional. A corrupção institucionalizada não confere ao governo federal a devida envergadura moral para se posicionar como paladino da legalidade, principalmente quando entes públicos permanecem criando dificuldades para o cidadão com intuito meramente arrecadatório/predatório ou para fazer um circo midiático e execrar publicamente uma classe profissional honrada e que literalmente movimenta a economia brasileira. Pode-se, portanto, até avaliar a prisão de caminhoneiros usuários do emulador de SCR como um instrumento de opressão política.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Diesel e adaptações para deficientes físicos: pode dar certo

Um tema que vinha despertando alguma controvérsia até relativamente pouco tempo atrás, mas que começa a ganhar mais visibilidade nos últimos anos, é a compatibilidade entre os motores Diesel e as adaptações veiculares usadas por condutores com alguma deficiência física. Desde a ausência de vácuo no coletor de admissão até os temores quanto ao risco de "disparos" de motor, uma série de fatores mantinha consumidores desse segmento um tanto afastados. Hoje, porém, tanto o uso intenso do gerenciamento eletrônico nos motores turbodiesel mais modernos quanto a popularidade do câmbio automático nas principais pick-ups e SUVs acabam por quebrar algumas desconfianças.

A industrialização de adaptações veiculares para deficientes físicos começou a se fortalecer logo após a II Guerra Mundial, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, com o principal objetivo de atender a veteranos com alguma mutilação e também às vítimas da poliomielite. Naturalmente, as principais tendências dos respectivos mercados automobilísticos influenciavam as soluções a serem adotadas e, enquanto os americanos se maravilhavam com o conforto do câmbio automático normalmente acompanhado por motores de 6 a 8 cilindros sedentos por gasolina, os europeus tinham à disposição mais modelos compactos e leves com motores igualmente menores que não se adaptariam bem aos pesados e ineficientes câmbios automáticos da época.

A solução considerada mais simples para não prejudicar em demasia o relativamente limitado desempenho dos veículos europeus do pós-guerra foi a embreagem automática, com destaque para o sistema Saxomat dotado de um acionamento centrífugo por meio de um platô especial com contrapesos para promover o desacoplamento com o veículo parado e o motor na marcha-lenta enquanto um servo atuado por vácuo e controlado por um contato elétrico montado na base da alavanca de câmbio era usado durante as trocas de marcha. Por uma questão de simplicidade, acabou sendo incorporado apenas em veículos com motores de ignição por faísca movidos a gasolina (tanto 2-tempos quanto 4-tempos) e usando como provisões de vácuo somente a depressão do coletor de admissão e um reservatório esférico. Tal sistema chegou a ser oferecido regularmente pelos principais fabricantes europeus ocidentais como uma alternativa mais econômica ao câmbio automático, com uma ênfase maior no conforto direcionada também a motoristas sem deficiência enquanto no leste europeu uma imitação soviética ficava restrita a versões adaptadas para deficientes em modelos tão diversos quanto o Trabant 601 e o Lada Zhiguli (mais conhecido pelo público brasileiro como Lada Laika). Por aqui até chegou a ser oferecido como opcional nos DKW-Vemag, mas sofreu com o preconceito e teve uma participação inexpressiva no mercado.

Posteriormente, surgiram adaptações direcionadas mais especificamente ao uso em veículos para deficientes físicos, dispensando a substituição do platô de embreagem original por um centrífugo e valendo-se apenas do vácuo e de sensores eletroeletrônicos vinculados à posição do acelerador e ao toque na alavanca de câmbio para controlar o acionamento da embreagem e até promover uma variação das velocidades de referência do sistema. O vácuo ainda era, no entanto, suprido exclusivamente pela depressão do coletor de admissão e pelo reservatório, preservando a compatibilidade apenas a motores com ignição por faísca. Em que pesem as limitações, ainda é o método mais comum para automatização da embreagem em automóveis adaptados para deficientes físicos devido ao custo e complexidade relativamente baixos.

Mesmo que o suprimento de vácuo (ou ar comprimido no caso de alguns caminhões e ônibus) para acionar um mecanismo automatizador de embreagem em um automóvel com motor Diesel fosse assegurado por uma fonte auxiliar, um "disparo" viria a ter consequências trágicas tendo em vista o uso da rotação do motor como um dos parâmetros de controle do acoplamento, eventualmente impossibilitando uma parada segura do veículo para que a origem do problema fosse devidamente tratada. Atribui-se hoje ao gerenciamento eletrônico o nível de suavidade e sofisticação que abriu novos mercados para o Diesel mesmo em segmentos mais prestigiosos, bem como uma menor propensão à ocorrência dos "disparos". Até a década de '90, quando o gerenciamento eletrônico ainda não era obrigatório para todos os veículos novos à venda na Europa, o uso do câmbio automático em veículos equipados com motor Diesel ainda era tabu fora dos Estados Unidos e do Japão.

Até meados da década de '90, a adaptação mais comum no Brasil e usada principalmente por paraplégicos consistia numa alavanca articulada incorporando comandos de freio e embreagem com o acelerador acionado por um rotor na empunhadura, normalmente montada ao lado da alavanca de câmbio original do veículo. Sem sombra de dúvidas é um recurso técnico muito precário, e cada vez mais difícil de ser encontrado (até hoje eu só vi ao vivo uma vez, em 2014, num Fiat Siena EL), mas aplicável tanto a veículos com motor de ignição por faísca quanto Diesel. É de se supor que, até em função da antiga prevalência do acionamento manual da embreagem nas adaptações para condutores com deficiência, o mercado brasileiro poderia experimentar uma menor rejeição ao Diesel nesse segmento tão peculiar.

A participação ainda muito expressiva de veículos com motor turbodiesel e câmbio manual no mercado europeu já poderia servir de pretexto para a busca por uma solução que atendesse às especificidades dessa aplicação, mas apenas recentemente, em resposta à massificação da injeção direta também em motores do ciclo Otto muitas vezes acompanhada pela supressão da borboleta de admissão (vulgo "afogador" ou "throttle-plate") e por conseguinte não havendo mais a geração de vácuo no coletor, começam a surgir sistemas com servos 100% elétricos, visando principalmente não sobrecarregar a bomba de vácuo usada para suprir a assistência dos freios de serviço. Já é até possível encontrar o sistema no Brasil, mas as maiores apostas do mercado no tocante a veículos para deficientes físicos ainda estão concentradas em torno do câmbio automático ou automatizado e priorizando veículos que custam até R$70.000,00 sem deduções fiscais e possam contar com as isenções de IPI, ICMS e IOF dentre os quais não há nenhuma opção com motor Diesel. A liberação para condutores com deficiência exercerem atividade remunerada com os veículos poderia servir de pretexto para uma oferta mais ampla desse sistema visando equipar caminhões, ônibus e alguns utilitários de menor porte como furgões, mas na prática não se vê nada de concreto nesse sentido.

De qualquer maneira, tanto com o câmbio manual quanto o automático, a aquisição de um veículo adaptado para condutor com deficiência deve ser sempre avaliada individualmente, embora não se possa negar que em mercados mais avançados o Diesel já tenha deixado de ser um tabu. Para quem quer economizar nos custos do combustível mas vê cada canto do compartimento de carga como um espaço precioso para transportar uma cadeira de rodas ou outro equipamento com o máximo de praticidade e segurança possível, diga-se de passagem, é uma alternativa muito melhor e mais conveniente que se aventurar com o peso e volume ocupados por um sistema de gás natural, por exemplo...

quinta-feira, 3 de março de 2016

Daihatsu Charade: renegado pelo mercado, mas uma base interessante para projetos

Dentre os inúmeros automóveis importados que começaram a chegar ao mercado brasileiro na década de '90, o Daihatsu Charade era um dos que podiam ter feito mais sucesso se tivesse vindo acompanhado de uma estratégia de marketing mais eficaz. Chegou apenas entre '94 e '96 na 4ª geração, que foi produzida entre '93 e 2000, com opção por um motor de 1.0L e 3 cilindros com 6 válvulas e carburador ou um de 1.3L e 4 cilindros com 16 válvulas e injeção eletrônica para o hatch, todos a gasolina, enquanto o sedan dispunha apenas de um motor de 1.5L e 4 cilindros com 16 válvulas também a gasolina. Em outros países o hatch também contava com o motor maior, além de um 1.6L para a versão esportiva GTi. Mas o que interessa mesmo é o motor CB-24 de 1.0L e 3 cilindros, não apenas por ter sido o mais comum no mercado brasileiro devido à tributação mais favorável a motores nessa faixa de cilindrada mas, principalmente, por ter compartilhado componentes com o motor CL Diesel de injeção indireta oferecido na 2ª e na 3ª geração do modelo, tanto em versões naturalmente aspiradas quanto turbocomprimidas. Como o motor CL também chegou a ser comercializado em versões para fins estacionários/industriais sob a designação Vanguard 3/LC numa joint-venture com a Briggs & Strattons, equipando também alguns quadriciclos side-by-side, o suprimento de peças para a montagem de um "misto-quente" baseado no CB está longe de ser inalcançável. A injeção indireta, além de impor pressões menos severas, também é interessante por favorecer o uso de óleos vegetais brutos como combustível alternativo. Tendo em vista que o motor não era exatamente um expoente em tecnologia, além das limitações inerentes à injeção indireta, baixa cilindrada e regime de rotação relativamente elevado, o uso de um turbocompressor é altamente desejável para que os valores de potência e torque não sofram tanto prejuízo.

terça-feira, 1 de março de 2016

Uma reflexão sobre os dilemas do etanol

Um combustível alternativo que já foi motivo de orgulho para o país, hoje o etanol enfrenta a desconfiança de uma parte considerável do público brasileiro. Em que pesem a relativa facilidade para implementar a produção desse combustível e a adaptabilidade a uma ampla variedade de matérias-primas que vão muito além da cana de açúcar, bem como um aproveitamento de sobras para a elaboração de rações pecuárias, as políticas desastrosas do atual governo para o setor agropecuário estão desencorajando investimentos na produção dos biocombustíveis em geral.

A pressão por uma redução nas quantidades de sal e açúcar em alimentos industrializados também poderia, ao menos teoricamente, liberar mais cana de açúcar e beterraba (principal matéria-prima do açúcar europeu e norte-americano) para a produção de etanol, mas não é o que vem ocorrendo, e naturalmente as usinas sucroenergéticas acabam direcionando uma maior parte da produção para o açúcar destinado à exportação. O fim dos subsídios ao etanol também desencoraja o uso em localidades mais afastadas das principais regiões produtoras, visto que o preço ao consumidor fica menos favorável em comparação à gasolina.

Nesse contexto, cabe destacar a profunda incoerência que é o desincentivo a uma fonte de energia menos nociva à saúde pública para atender a fins meramente arrecadatórios e alimentar os ralos da corrupção que se instalou em todos os ramos da administração pública. Ao invés de proporcionar uma diminuição nas despesas que os serviços de saúde tanto públicos quanto privados e filantrópicos tem com o tratamento de enfermidades respiratórias, além de hoje sofrerem com o sucateamento, cria-se outro falso pretexto para tentar justificar um retorno da famigerada CPMF e sufocar ainda mais a combalida economia, além de encher o caixa 2 do PT e respectivos partidos-satélite como o PSOL e o PSTU.

A evolução relativamente lenta dos motores de ignição por faísca aptos ao uso do etanol, principalmente no tocante a inconveniências da partida a frio antes da chegada da injeção direta, também acaba motivando alguma rejeição ao álcool. A disponibilidade ainda restrita desse combustível em mercados estrangeiros é outra inconveniência, embora tenha o efeito minimizado desde a introdução do sistema "flexfuel" que permite tanto o uso da gasolina quanto do etanol puros ou misturados em qualquer proporção. Ainda assim, fazem-se necessários mais esforços para que o consumo dos motores ao operar com etanol não seja tão desfavorável em comparação à gasolina, e a injeção direta tem um peso significativo ao viabilizar o uso de taxas de compressão mais elevadas que, se por um lado beneficiam o uso do etanol, por outro aumentam o risco de detonação e pré-ignição associado à gasolina em motores de injeção indireta.

Apesar dos benefícios que a injeção direta proporciona, que vão desde a maior facilidade para a partida a frio até a maior eficiência geral, não se pode ignorar os efeitos adversos sobre o controle de emissões. Intensifica-se a formação de óxidos de nitrogênio (NOx), problema historicamente mais associado aos motores do ciclo Diesel, visto que o combustível só se mistura à carga de admissão nas câmaras de combustão depois que o ar já está aquecido pela compressão, sem a possibilidade de absorver calor latente durante a passagem pelo coletor de admissão. Nos motores de ignição por faísca o uso de um sistema de injeção dupla, direta e indireta, pode atenuar a emissão de NOx e ainda beneficiar o torque em baixa rotação, mas a maior complexidade começa a se tornar um estorvo.

Considerando que os motores de ignição por faísca vão naturalmente ter uma eficiência térmica inferior, a possibilidade de aplicar o etanol aos motores do ciclo Diesel passa a fazer mais sentido mesmo que acabe tendo um consumo até 50% mais elevado em volume comparado ao óleo diesel convencional, tendo em vista que ainda assim chega a ser mais econômico em comparação à gasolina num motor de ignição por faísca. Para garantir um funcionamento preciso, as estratégias mais utilizadas são a associação entre o etanol e a injeção-piloto de óleo diesel convencional (podendo ser substituído por biodiesel ou até óleos vegetais puros dependendo da preparação do motor) ou o uso de um aditivo promotor de ignição que pode ser sintetizado a partir do bagaço da cana de açúcar como o NTHF (nitrato de tetra-hidro furfurila). Em situações onde o etanol esteja indisponível e o transporte de um suprimento desse combustível seja vetado por motivo de segurança, como pode ocorrer durante operações militares em territórios estrangeiros, ainda é viável a operação normal do motor apenas com óleo diesel convencional, desde que sejam observados os teores de enxofre visando minimizar danos aos sistemas de controle e pós-tratamento de emissões quando aplicáveis.

O modismo dos híbridos, disseminados em mercados desenvolvidos como uma alternativa para manter a ignição por faísca competitiva diante do Diesel, também já desperta interesses no Brasil, sendo ocasionalmente aventada a possibilidade de introduzir versões "flexfuel" de modelos como o Toyota Prius e o Ford Fusion Hybrid embora nenhum passo concreto seja dado nesse sentido. Tem sido recorrente o uso de taxas de compressão mais elevadas nos híbridos em comparação a outros modelos com motor de ignição por faísca e injeção indireta, o que pode até ser confundido inicialmente como uma potencial vantagem ao uso do etanol mas, quando lembramos que a compressão dinâmica sofre uma diminuição devido à duração mais longa da abertura das válvulas de admissão, a compressão estática não se torna tão significativa assim.

A bem da verdade, pode-se dizer que os sistemas de propulsão híbrida com ignição por faísca não constituem uma verdadeira ameaça ao ciclo Diesel, visto que o custo inicial e a complexidade técnica ainda são um empecilho maior que a diferença de preços entre um motor de ignição por faísca e um Diesel de desempenho comparável. A prevalência da aspiração natural na atual geração de híbridos com ignição por faísca, em contraponto à presença massiva do turbocompressor em motores Diesel, é outro ponto polêmico em função de temores quanto a um custo de manutenção e reparos mais elevado, mas é difícil ser contra a maior aptidão de um bom turbodiesel a enfrentar variações de altitude sem grandes prejuízos ao desempenho.

Também é importante mencionar os combustíveis gasosos, com destaque para o gás natural, como outra ameaça ao market-share do etanol. Mesmo provocando um acréscimo de peso ao veículo, bem como ocupando espaço considerável no compartimento de carga na maioria das instalações de gás natural veicular e dependendo da ignição por faísca ou de uma injeção-piloto de óleo diesel convencional (ou biodiesel e óleos vegetais puros quanto aplicável), o custo ainda é mais favorável na maioria das regiões onde já é oferecido regularmente. As perspectivas vem sendo promissoras diante de uma regulamentação da comercialização do biogás/biometano para fins automotivos, embora ainda esteja muito lenta, mas promove uma maior acessibilidade de populações rurais aos combustíveis gasosos devidamente regulamentados para uso automotivo (o que exclui o gás liquefeito de petróleo/GLP/"gás de cozinha") e já pode ser apontado como um sucessor do etanol na maioria das aplicações veiculares leves e avançando até para o serviço pesado em alguns segmentos tão variados quanto o transporte coletivo urbano de passageiros e a coleta de lixo. A menor dependência em torno de uma matéria-prima consolidada também favorece o biogás, que pode ir além das fontes de amido, sacarose ou celulose requeridas para produção do etanol e ser gerado a partir de qualquer resíduo orgânico não apenas vegetal como também de origem animal.

Enfim, ainda é possível reabilitar o etanol junto à opinião pública devido às vantagens ambientais em comparação à gasolina, e ainda fortalecer a imagem desse combustível como um passo a mais rumo à independência energética da população rural, mas é necessário um bom-senso que hoje está em falta entre os que se encontram na posição de administradores públicos. As dificuldades de ordem técnica podem ser superadas facilmente, enquanto o grande desafio hoje se deve tão somente a absurdos entraves burocráticos levados a cabo para favorecer a corrupção institucionalizada.