sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Diesel e ignição por faísca: não é impossível conciliar

A consolidação do óleo diesel como o combustível padrão das principais frotas militares, tanto em função da autonomia e segurança quanto pela ampla disponibilidade e facilidade em implementar o uso emergencial de substitutivos diversos que vão desde o biodiesel até querosene de aviação, contribuiu para reduzir a complexidade logística em campo de batalha. No entanto, em algumas aplicações náuticas leves ainda havia alguma dificuldade sobretudo em função da relação peso/potência e dificuldade em encontrar motores de popa movidos a óleo diesel.

A tradicional fabricante Evinrude, parte do grupo BRP (Bombardier Recreational Products), desenvolveu uma solução um tanto ousada para atender a essa demanda: com base nos motores E-TEC de ciclo 2-tempos com ignição por faísca e injeção direta, produz uma série de motores multicombustível já usada por organizações militares e corporações policiais dos Estados Unidos. Os motores Evinrude MFE (MultiFuel Engine) 55MRL (com propulsão a hélice), 55MJRL (com propulsão sem hélice) e 30MRL são homologados para usar preferencialmente os combustíveis JP-4, JP-5, JP-8, Jet-A, Jet-B, querosene e gasolina, mas em fichas técnicas também é mencionado o óleo diesel como alternativa para uso eventual/emergencial.

O sistema de injeção adotado pela Evinrude, e também por outros fabricantes de motores marítimos como Mercury (adotando o nome comercial OptiMax), Tohatsu (TLDI) e Nissan Marine (que usa a mesma designação adotada pela Tohatsu), é o desenvolvido pela empresa australiana Orbital Engines, e que chegou a ser testado em aplicações automotivas, chamando a atenção de fabricantes como a Ford, que chegou até a cogitar a aplicação desse sistema no Fiesta e no Aspire/Festiva. Curiosamente, alguns Festivas usados como mula de teste na Austrália foram designados como "EcoSport".

Levando em consideração que a injeção direta já está ganhando espaço até mesmo no atrasado mercado brasileiro em modelos como o Ford Focus, que usa basicamente uma versão do motor Mazda SkyActiv-G 2.0L com a taxa de compressão ligeiramente reduzida em função de questionamentos em torno da qualidade da gasolina disponível nos mercados latino-americanos, norte-americanos e australiano, e que a taxa de compressão padrão tanto nos SkyActiv-G de ignição por faísca quanto no SkyActiv-D é a mesma, de 14:1, evidencia-se uma relativa facilidade em conciliar tanto vantagens do ciclo Otto (4-tempos) no tocante a vibrações, conforto acústico, facilidade na partida a frio e enquadramento em normas de emissões mais rígidas quanto do ciclo Diesel relativas à eficiência, e até ampliando o espectro da adaptabilidade a combustíveis alternativos.

Hoje, em aplicações com ignição por faísca, o etanol e o gás natural são as principais apostas. Também podem ser aplicados ao ciclo Diesel, como já é amplamente comprovado por grandes fabricantes como Scania, Volvo, Mercedes-Benz, MWM e Cummins-Westport, embora persista a necessidade de uma injeção-piloto de óleo diesel no caso do gás ou o uso de aditivos com o etanol quando se mantém a ignição por compressão. Importante frisar, ainda, que os motores de ignição por faísca acabam tendo o desempenho e a eficiência menos comprometidos pela atual geração de dispositivos de controle de emissões, até levando alguns operadores a questionar a viabilidade do Diesel.

Cabe observar que a principal estratégia aplicada em motores de ignição por faísca e injeção direta visando uma menor sensibilidade a gasolinas com uma octanagem (resistência à pré-ignição) mais baixa é justamente o sincronismo da injeção mais próximo ao ponto-morto superior (quando as válvulas num motor 4-tempos estão fechadas, marcando a transição entre as fases de compressão e expansão).

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Aberração brasileira: Renault Kangoo 1.0

Não foi apenas a Fiat que tentou aproveitar a alíquota de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) diferenciada para veículos com motor até 1.0L para oferecer uma versão mais acessível de um utilitário compacto. De '99 a 2004 a Renault chegou a adotar a mesma estratégia com o Kangoo. O que parece inicialmente uma boa jogada sob o ponto de vista comercial, serve apenas para escancarar algumas aberrações do mercado brasileiro.
A começar pela própria definição do que seria um carro "popular" apenas pela cilindrada, e convenhamos que tal medida se mostra incoerente quando levou alguns fabricantes a fazerem gambiarras específicas para atender a esse ato meramente burocrático e sem nenhuma justificativa plausível sob o ponto de vista técnico. No caso específico do Kangoo, à época a versão básica disponibilizada na Argentina usava motor de 1.2L, enquanto a versão de 1.0L era restrita ao Brasil com alguns exemplares remanescentes desovados no Uruguai para garantir que a escala de produção da versão com motor diferenciado não desse tanto prejuízo.
Com um motor que se mostrava claramente subdimensionado diante de um fator de carga mais elevado que num hatch compacto, a proposta de um consumo mais contido que atraía alguns compradores para a versão com motor de 1.0L no fim se mostrava superestimada. Por fim, como se trata claramente de um veículo utilitário, embora não esteja abrangido no limitado espectro definido pelos burocratas brasileiros em função de capacidades de carga, passageiros ou tração, o Renault Kangoo 1.0 é outro daqueles exemplos do quanto faria muito mais sentido uma liberação do uso de motores Diesel em veículos leves no mercado brasileiro.
Tive que incluir a foto de um Kangoo vermelho para agradar a algum colorado amigo que eventualmente leia isso...

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Agricultura forte é compromisso com o desenvolvimento

Muito se diz contra o agribusiness (ou agronegócio, para quem tenha frescura objeção aos anglicismos), mas ainda é uma das principais forças que mantém o Brasil de pé. Não apenas no sentido figurado, visto que um país onde o setor agropecuário é enfraquecido estaria condenando a própria população à morte pela fome. Critica-se de forma um tanto infundada, também, eventuais impactos na produção dos biocombustíveis e uma infinidade de insumos industriais sobre a disponibilidade de alimentos, mas hoje poucos trabalhadores estão sendo tão ameaçados quanto o produtor rural brasileiro. O medo ronda as porteiras das fazendas, enquanto o poder público parece se divertir de forma sádica...

Virou moda mencionar a tal "sustentabilidade" defendida à exaustão por teóricos que tentam dar um ar mais "científico" ao velho ranço anti-capitalista, desprezando soluções tecnicamente viáveis para a atividade agropastoril. É muito mais fácil criticar quem ainda se dispõe a trabalhar em meio a essa baderna... Não que as questões ecológicas sejam de todo desprezíveis, muito pelo contrário, mas não é sensato usá-las como pretexto para impedir o desenvolvimento nas atuais fronteiras agrícolas e desprezar oportunidades de aumentar a rentabilidade do produtor rural. Por mais que a chamada "agricultura familiar" em pequenas propriedades deva receber algum incentivo, até como forma de conter o êxodo rural, a forma como o agribusiness é demonizado por algumas facções no Brasil não traz nenhum benefício ao pequeno agricultor. Ao invés de procurar bodes expiatórios, seria muito mais coerente que os ecologistas-melancia saíssem do maconhódromo e prestassem alguma assistência técnica rural.

Quem realmente está comprometido com o desenvolvimento econômico e social tem um profundo respeito pela agricultura, seja numa pequena chácara ou numa grande fazenda. Segregar e antagonizar tais grupos só enfraquece ambos. Vale destacar, ainda que o biodiesel e o uso direto de óleos vegetais como combustível veicular é uma boa alternativa para o pequeno produtor, mas muitos que alegam defender a "agricultura familiar" se posicionam contra um fim das restrições ao uso de motores Diesel em veículos leves baseadas em capacidade de carga, passageiros ou tração, usando como alegação velhos clichês relacionados principalmente à emissão de materiais particulados...

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Mais uma do YouTube: Jetta com o motor "disparado"

Não é muito incomum encontrar relatos de motores Diesel que "disparam" e seguem funcionando mesmo que o operador os tente desligar, principalmente em motores mais antigos que não dependiam de sistemas elétricos e eletrônicos para permanecer em marcha. Quando isso ocorre, só é possível forçar a parada obstruindo a admissão de ar para "afogar" o motor, que no caso dos Diesel normalmente não contavam com uma válvula-borboleta (throttle-body, conhecida como "afogador" em motores equipados com carburador) para limitar o fluxo de ar admitido como ainda é usual nos motores de ignição por faísca mesmo com o advento da injeção eletrônica.

Pois bem, o velho Volkswagen Jetta do vídeo abaixo tinha motor de ignição por faísca, movido a gasolina, com carburador e bomba de combustível mecânica (no caso, a lift-pump que vai do tanque ao carburador), e acabou "disparando", sofrendo o que normalmente se classifica como "efeito Diesel" mas que na verdade está mais próximo do princípio de funcionamento dos antigos motores "semi-Diesel" de ignição por tubo quente. Nesse caso, o acúmulo de calor no cabeçote faz com que a mistura ar/combustível ainda sofra ignição mesmo sem uma centelha nem as elevadas compressões associadas ao ciclo Diesel.



Pode-se observar que, numa tentativa de interromper o "disparo" do motor, os cabos de vela são arrancados, denotando claramente que não se tratava de um motor Diesel. Para quem ainda não é tão familiarizado com mecânica, não custa nada recordar que "motor a diesel não tem vela". Nota-se, ainda, que o "disparo" só cessa quando alguém fecha a válvula-borboleta.

Uma das razões apontadas para a ocorrência desse fenômeno, além da válvula-borboleta travada aberta, é a deposição de sedimentos carbonizados na câmara de combustão, tanto por uma mistura excessivamente rica (com uma maior proporção de combustível para o volume de ar admitido) quanto pela aspiração de óleo lubrificante através da válvula blow-by de ventilação do cárter, que pode ser facilmente constatada em função da fumaça branca emitida. Tais depósitos chegam a ficar incandescentes, em brasa, e assim concentrando calor num efeito próximo ao das resistências de pré-aquecimento (glow-plugs) usadas como auxílio para a partida a frio em motores Diesel (e até em alguns "semi-Diesel" com um sistema auxiliar de ignição elétrica para promover a partida a frio com gasolina). Mas vale salientar que ainda é possível um motor sem muita deposição de sedimentos carbonizados "disparar".


Antes que algum engenheiro-de-botequim, professor-pardal, mecânico boca-de-porco ou qualquer leigo opte por induzir deliberadamente o chamado "efeito Diesel" numa tentativa precária de converter um motor de ignição por faísca para Diesel, é pouco provável que obtenha sucesso...

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Encarando os NOx sob uma nova perspectiva

Recentes estudos apontaram uma relação entre os óxidos de nitrogênio (NOx) liberados na atmosfera e eventuais benefícios às florestas e à agricultura. São constantemente apontados como um dos fatores que levam à ocorrência da chuva ácida devido à formação do ácido nítrico quando reage com a água, e passando a serem rigorosamente controlados por intermédio de dispositivos como o EGR que sacrifica a eficiência energética ou o SCR que traz complexidade aos processos logísticos necessários para a manutenção da frota, mas a reação do ácido nítrico com outras substâncias presentes no solo leva à formação de nitratos, da mesma forma que ocorre com os NOx formados a cada vez que um relâmpago cai, e assim ocorre um acúmulo de nitrogênio no solo que é absorvido com mais facilidade pela maioria dos espécimes vegetais enquanto se desenvolvem, visto que não fazem qualquer simbiose com bactérias fixadoras de nitrogênio como as que se acumulam junto às raízes de leguminosas (feijão e amendoim, por exemplo).

Também aponta-se os NOx como a principal causa da acidificação dos oceanos, quando na verdade o dióxido de carbono (CO², vulgarmente conhecido por "gás carbônico") se acumula em maior quantidade no ambiente marinho, formando ácido carbônico, que diga-se de passagem é o mesmo ácido que dá o sabor característico das bebidas gaseificadas artificialmente. Em último caso, deve-se lembrar que a vegetação marinha (algas e fitoplânctons) também acabaria tendo mais facilidade para absorver compostos de nitrogênio, aumentando a disponibilidade de alimento para os animais marinhos, inclusive para os peixes utilizados na alimentação humana e que também podem ter o óleo do fígado usado como matéria-prima para biodiesel...

Tomando por referência a moda das misturas de etanol à gasolina, e flexibilizando as classificações de emissões de modo a considerar neutro o carbono não-fóssil emitido pela queima de combustíveis provenientes da biomassa, devemos lembrar também do caso do biodiesel e de óleos vegetais puros que quando usados diretamente como combustível em motores Diesel acabam por emitir uma maior quantidade de óxidos de nitrogênio, que no entanto tem o ciclo fechado ao serem naturalmente convertidos em nitratos e reabsorvidos durante a produção de plantas oleaginosas. Nesse contexto, cabe até justificar o não-uso de dispositivos como os já citados EGR e SCR ao operar com biocombustíveis, cujos custos vem se tornando cada vez mais competitivos diante da volatilidade dos preços do petróleo e derivados. Importante recordar também que, além do acréscimo aos custos de produção, aquisição e manutenção dos motores, o EGR não apenas prejudica o processo de combustão como um todo como acarreta numa maior sensibilidade a alterações na especificação do combustível a ser utilizado, dificultando sobretudo a aplicação direta de óleos vegetais brutos.